Pietá,
de Michelangelo, 1499
EM BUSCA DA
MEMÓRIA PERDIDA
Otávio
Martins
Todos
olhavam para ele consternados; abraçavam-no sem mesmo dizer qualquer
palavra, apenas para confortá-lo e para que se sentisse amparado
naquele momento tão grave e delicado da sua existência, já
fragilizada pelos anos.
Ele
não tinha o olhar triste; perdido, sim, transcendia a figura da
mulher que estava sendo velada e que, agora, nos últimos momentos
daquele ritual, era chegada a hora de fechar o caixão, o qual, logo
a seguir, seria levado para o seu sepultamento.
Apertando-lhe
contra si, ao passar o braço direito pelas suas costas, num gesto
claro de proteção, o homem, bem mais jovem que ele, tinha o ar
abatido e tristonho. Não obstante, esforçava-se para confortá-lo.
Certamente
que alguma coisa ia mal com a sua memória, isso ele já havia
percebido. Não poderia estar ali, naquela condição, sem mais nem
menos. Precisava ir à busca do fio da meada, o qual, possivelmente,
o ajudaria a desvendar qual o seu papel naquele triste acontecimento.
O féretro, sobre um carrinho, era conduzido, logo à sua frente, por
um funcionário do cemitério. O homem que lhe abraçara fortemente
lá na capela, antes de fecharem o caixão, permanecia ao seu lado,
tendo, agora, os olhos vermelhos, denunciando que havia chorado
durante aquele breve intervalo.
Assim,
de repente, viu-se, lá num canto das suas lembranças, sentado,
vestindo um longo sobretudo azul-marinho, de fino acabamento;
um gorro de tecido de lã, cinza, que também servia para cobrir os
primeiros sinais da sua calvície. O banco em que estava sentado
ficava localizado bem no meio de uma daquelas veredas da praça. Do
outro lado, no banco em diagonal ao seu, reconheceu o sujeito que
comia um lanche caseiro, rodeado por uma porção de pombos que
esperavam as migalhas que por ventura caíssem ou que fossem
atiradas. Lembrou, ainda, que o sujeito havia trabalhado, por muito
tempo, no estacionamento, ao lado da alfaiataria do seu pai. A
alfaiataria tinha uma ótima freguesia, o que exigiu afinada
capacitação profissional de seus cinco ou seis funcionários. A
mulher que estava ao seu lado, entretanto, não tinha o rosto nítido
ao ponto de que ele pudesse identificá-la. Ainda que muito tivesse
se esforçado, não teve jeito; não saberia dizer quem era, apesar
de estarem ali juntos. O sol amenizava o frio naquele grande cenário
de muitas árvores; talvez fosse o fim de um outono qualquer, ou
comecinho do inverno.
Ao
passar por um enorme jazigo – provavelmente de alguma família
muito rica – avistou a estátua, em mármore, fixada sobre o teto,
a qual dava à construção um aspecto pomposo, até exagerado, mesmo
para a representação à qual se destinava. Mas, a estátua, ainda
que fosse uma réplica, não perdia, por isso, a sua importância.
Impossível passar por ali sem se dar a devida atenção àquela peça
que, agora, o reportava à Renascença Italiana, de Michelangelo, com
a sua Pietá. Apesar do grave momento, experimentou uma ponta
de satisfação, lembrando, até, que a Pietá fora
encomendada por um cardeal francês, para a Capela dos Reis de
França, localizada na Basílica de São Pedro, por volta do ano de
1500.
Como
poderia ter esquecido?
Os
trabalhos em escultura eram a sua vida. Depois que o seu pai morreu,
ficou com a imensa casa, uma construção antiga, de um amplo jardim,
pelo qual costumava ir espalhando as suas esculturas, lugar onde
passava a maior parte do tempo. Logo a seguir, já estava iniciando
uma peça de grandes dimensões; lá do alpendre, bem distante, a
mesma mulher da praça acenava para ele, em trajes de passeio,
parecendo que o avisava estar de saída ou, apenas, se despedindo.
Aqueles gestos que pareciam de intimidade ou convivência – sentiu
essa sensação – lhe davam mais ânimo e inspiração para cada
novo trabalho.
Enquanto
se preparava para iniciar o entalhe, o menino corria, junto a um cão
labrador, por várias partes do jardim, demonstrando muita
segurança, talvez pelo simples fato de sentir a sua proximidade. Ele
não poderia “parar” ali, precisava ir em frente às suas
redescobertas. Nem tempo para saber o que estaria reservado àquela
enorme peça bruta de mármore.
Quando
o carro que levava o féretro virou à esquerda, numa daquelas
avenidas do interior do cemitério, pressentiu que o local do
sepultamento estava próximo. Era preciso ser mais rápido na
revisitação às suas lembranças, sob pena de não conseguir
identificar-se direito, tampouco a mulher que iria ser sepultada
dentro de alguns instantes.
Durante
o breve percurso permaneceu calado. O gorro de lã, escuro – do
mesmo tipo daquele que estava usando naquela tarde fria lá na praça
– servia para protegê-lo do frio e de um vento persistente e um
pouco forte naquele triste e cinzento final de tarde, acentuando
ainda mais os seus cabelos compridos, totalmente brancos e ralos, os
quais denunciavam que teria a idade aí por volta dos oitenta e cinco
anos, ou até mais. Em questão de alguns passos, a memória, que se
ia restabelecendo, continuava levando-o a reviver outros fatos,
passados em diferentes épocas.
A
mulher que caminhava de braços dados com o sujeito que tinha o outro
braço sobre os seus ombros não tinha um rosto totalmente
desconhecido, mas, tampouco, que lhe pudesse parecer familiar. Talvez
não fosse de uma estranha, porém, nada que lhe provocasse a
sensação ou a impressão de que fosse alguém que gozasse de sua
intimidade ou, mesmo, de sua convivência.
Preferia
caminhar olhando para frente. Era assim que a sua memória
apresentava várias cenas que se iam revelando no decorrer do trajeto
pelo qual o corpo da mulher estava sendo levado. Não havia tempo a
perder. Era preciso aproveitar ao máximo todas as informações que
pudessem ajudá-lo a identificar a morta e, também, o porquê de
estar li, naquela condição, dando-lhe a impressão de ser um dos
principais atingidos por aquele melancólico acontecimento.
Avistou
bem lá na frente, junto à parede da direita, os dois coveiros que,
sobre um andaime, faziam os últimos preparativos numa daquelas
gavetas, a qual ficava na fileira do meio, não muito alta. Somente
naquele local havia algum movimento e a presença daqueles dois
trabalhadores; eram sinais de que - quase certeza - ali a mulher
seria sepultada. Ficou um pouco aflito ao perceber a distância que,
agora, estabelecia, a olhos vistos, o curto prazo que teria para
decifrar todo o mistério em que se sentia envolvido.
O
funcionário do cemitério que ia conduzindo o carrinho que carregava
o esquife procurava ir numa velocidade bem lenta, dando a impressão
que assim o fazia, somente para que ele, com seus passos quase
arrastados, pudesse acompanhá-lo de perto. Mesmo assim, sabia que
travava uma luta desesperada contra o tempo. Por mais que ele
tentasse atrasar o ritmo do acompanhamento, o enterro estava em seus
últimos momentos; isso era certo. Outro ponto que o dificultava, era
a maneira como as suas lembranças se apresentavam. Não surgiam numa
ordem cronológica. Por vezes, voltavam a uma época remota para, a
seguir, saltarem para um tempo cá na frente. A essas alturas, ainda
que algum fato pudesse despertar a sua curiosidade, procurava não se
deter nos detalhes; bastava-lhe entender o significado principal de
algum acontecimento, e pronto. Talvez num outro momento viesse a ter
a oportunidade de relembrá-lo com mais calma, podendo, assim,
dedicar-lhe melhor atenção.
Ao
chegar a casa com um automóvel que conseguira comprar depois de
muito economizar, estavam a lhe esperar, uma mulher e um jovem,
debruçados sobre o portão da frente. Época em que o automóvel era
uma raridade. Encostou-o em frente a casa, desceu e, logo a seguir,
dirigiu-se aos dois; entregou as chaves para o rapaz que,
imediatamente, a passos ligeiros, depois de se falarem qualquer
coisa, foi em direção ao veículo. A seguir, colocou o
braço sobre os ombros da mulher e se dirigiram ao interior da casa.
Não deu pra ele saber se haviam entrado para comemorar; a porta foi
fechada logo em seguida.
E
essa lembrança, agora? Nem mesmo em outros tempos havia recordado
daquilo. A mulher aparecia de mãos dadas com ele, naquela mesma
praça, trazendo de casa uma sacolinha de tecido, cheia de farelos de
pão e sobras de outros alimentos para jogá-los aos pombos, que
eram, sempre, em grande quantidade. Percebeu que assim o faziam,
seguidamente, como um bom motivo para mais um passeio pela praça.
Outra
vez a memória com as suas manobras, brincando com o curso do tempo.
A mulher que estava do outro lado do homem que o amparava nos últimos
instantes daquele cortejo
fúnebre, aparecia bem mais jovem, vestida de noiva, numa festa em
sua casa, com muitos convidados, cuja maioria passeava pelo jardim
admirando as suas esculturas. Depois, na hora de cortar o bolo, tinha
ao seu lado o mesmo homem que ali estava entre os dois. Ele e a mesma
mulher daquelas outras aparições - felizes - postados ao lado dos
noivos. Aquela mulher – não precisaria mais de outras revelações
– era a sua esposa. Aos seus lados estavam o seu filho e a sua
nora. Não poderia haver mais dúvida.
Quando,
por fim, os coveiros retiraram o caixão de cima do carrinho e o
descansaram na extensão do andaime, antes de colocá-lo,
cuidadosamente, na gaveta, ele irrompeu num choro baixinho, sem
causar qualquer preocupação ou admiração em nenhuma daquelas
pessoas, as quais, ele percebera, procuravam ajudá-lo a transpor
aquele momento tão difícil e único. Chorou por mais alguns
minutos, aliviado por ter conseguido se despedir da sua companheira,
de mais de cinquenta anos, com toda a lucidez.
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